domingo, 19 de fevereiro de 2012

Argumento contra o silêncio

Eu devo avisar que sou vegetariano e isso influenciou muito quando escrevi esta fábula. Portanto, se achar que o texto é ruim, sem problemas. Acredito que você seja onívoro. ;)


A posição de todos era a mesma, e um leão não era considerado mais poderoso do que um cervo; porém, isso foi há milhões de anos, quando o fogo era descoberto e a agricultura, pouco conhecida e praticada. Eram tempos dos mais pacíficos até que uma série de crimes teve início.

Animais desapareciam e, depois, eram encontrados assassinados, com partes dos corpos faltando. Em certas ocasiões, somente achavam seus esqueletos. A identidade do assassino era um enigma, mas o sujeito parecia um tanto seletivo. Entre todos os mortos, bois, vacas, porcos, galinhas e peixes destacavam-se.

Foi um tempo de muito caos. Todos se escondiam em suas tocas e cavernas, entretanto, o assassino era sagaz. Famílias de bovinos eram surpreendidas pela madrugada e, quando raiava o Sol, nenhum membro havia sido poupado.

Muitos eram os animais mortos. O assassino não percebeu que isso deixava uma brecha em seus perfeitos planos. A Polícia dos Bichos contemplava o círculo de suspeitos se fechando. Os tigres eram descartados, os ursos, crocodilos… Então, apenas duas espécies restaram: serpentes e humanos. Se eles não morriam, eram eles os criminosos.

Todos começaram a olhar torto para os potenciais criminosos. Hipopótamos evitavam sair da água, macacos ficavam nos galhos mais altos de suas árvores. Foi um período tenso, contudo, um homem foi encontrado. Seu corpo estava frio, sem vida, e na perna direita havia dois finos orifícios. O sujeito havia morrido com veneno de cobra.

A assassina foi capturada rapidamente, pois se achava ferida, não muito longe do local do crime. Marcaram de imediato para julgar todas as serpentes um conselho de animais. O Humano Alfa parecia um tanto ressentido. Outros alfas bradavam à Cobra Alfa e à criminosa.

A sábia Juíza Coruja pediu silêncio. A balbúrdia em seu tribunal era indescritível. Depois de controlar a situação, ela recebeu acusações, fatos e teorias. As serpentes ouviam tudo quietas. Como culpadas, pensavam os animais. Agora que haviam descobrido as responsáveis por tamanha crueldade tudo fazia sentido. Aqueles seres longos e cilíndricos que sibilavam e expunham a língua bifurcada sempre foram muito suspeitos. A confusão voltou quando a juíza deu voz à assassina.

— Matei, sim — confessou ela e todos urraram. — Matei, mas alego legítima defesa

A coruja a encarou. Não fosse sua presença, os alfas começariam a agir feito selvagens e a matariam.

— O homem tentou algo contra você?

— Sim! Eu estava me alimentando de algumas folhas de hortelã quando notei sua presença. Virei-me e vi que ele empunhava um pedaço de madeira com a extremidade aguda. Agilmente, ele me atacou, forçando a arma a penetrar em meu corpo. Fui muito ferida e desmaiei. Quando acordei, ele tentava se alimentar de mim! — muitos dos presentes arfaram, surpresos. — Fui forçada a mordê-lo.

Os humanos berraram em auxílio do defunto. “Foi ela quem tentou matá-lo e ele, na realidade, se defendeu!”, argumentavam.

A Juíza Coruja ponderou.

— Vou precisar que a Perícia dos Bichos examine os corpos da ré e da vítima.

Os humanos ficaram com uma expressão de pânico quando ouviram isso.

— Vão cortar o corpo de nosso companheiro? Ele não merece algo assim! — falou o Alfa. — Merece um digno enterro.

A expressão deles mudou novamente quando os peritos entraram no tribunal. Era como se os recém-chegados representassem ameaça.

— Não merece, aquele assassino! — berrou a serpente julgada. — Como podem se aproveitar da situação para nos culpar dessa série de crimes? Vocês humanos são impuros! Cobras nunca seriam capazes de matar outras espécies daquela forma! Nunca seríamos capazes de nos alimentar de nossos colegas!

Por um instante, os animais ficaram indignados com as acusações da cobra. No entanto, a seguir, o que lhes fazia sentido fez ainda mais com aquelas palavras. A forma como os corpos das vítimas eram encontrados… Serpentes não tinham habilidade alguma para algo assim. Porém, os humanos tinham uma anatomia mais evoluída. Eles eram capazes de cometer as atrocidades cometidas. A resposta para tudo estava ali.

O Humano Alfa notou os olhares dos animais. Eles haviam percebido tudo. Se não tomasse uma atitude, haveria uma revolta no tribunal. Ainda bem que ele e seus súditos haviam vindo preparados. Uma piscada breve de olho e os servos entenderam sua ordem.

Armas desconhecidas surgiram. Arcos e flechas e lanças, como chamavam os humanos. Em uma piscada de olhos, a Juíza Coruja havia sido apunhalada. O Alfa tinha uma arma especial, conhecida entre os homens como espada. Ele se encaminhou à serpente que assassinara seu camarada, a que fizera acusações contra sua espécie. Fazia questão de matá-la ele próprio. Ela sibilou arrepiada quando ele ficou à sua frente.

— Por que vocês estão nos comendo? Não estão contentes com os vegetais? — indagou a cobra.

— Temos que nos deslocar quando eles acabam. Isso é inconveniente. E, além do mais — o Humano Alfa sorriu maleficamente —, vocês são deliciosos. — E enfiou a espada na cabeça da cobra.

Nenhum animal senão os humanos sobreviveu para contar tamanha carnificina, que terminou com uma fogueira para assar a carne resultante da brutalidade. Ninguém se alimentou das serpentes. Tinham agora repulsa por elas, portanto, seus corpos foram simplesmente cremados nas chamas.

Milênios se passaram e até os dias de hoje os humanos continuam devorando a carne de outros animais. Se hoje eles não falam, é porque as pessoas obrigaram-nos a ser silenciosos. Não admitiam que eles dissessem uma palavra enquanto os torturavam, portanto, aprenderam a apenas emitir seus urros, mugidos, balidos, cacarejos, miados, latidos. Ficaram irracionais e começaram até a matar uns os outros, como os humanos. Ah, se um dia tornarão a ser inteligentes? Improvável.

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