domingo, 24 de outubro de 2010

Amor e Ódio… e Bom-senso


Havia uma dimensão dominada por personificações de sentimentos chamadas como “deuses”. A princípio, quem governava era o Amor. Poderoso, era ele quem comandava tudo que acontecia. Ninguém podia se apaixonar sem seu consentimento — assim como odiar. Foi quando o Ódio conheceu a Raiva e, unidos, começaram a planejar coisas não muito positivas, como é de se esperar.

O Ciúme e a Inveja gostaram do que ouviram de seus colegas deuses. Assim como a Ambição, a Ansiedade… O plano foi passado pelos deuses perversos até chegar aos ouvidos da Guerra, que explodiu.

O Amor entrou em pânico. Todos aqueles deuses estavam para invadir seu santuário e ele nada podia fazer. Os bons sentimentos eram poucos. E se fossem muitos, de que adiantaria? A Paz, por exemplo, que faria diante daquela conspiração? Mas nem tudo estava perdido. O Bom-senso, sagaz, acompanhara todo aquele plano desde o início. E como o governo do Amor lhe era conveniente, quis ajudá-lo. Escondera-se com sua tropa nas masmorras do santuário. E assim que escutaram a marcha do Ódio e seus companheiros, subiram aos portões e surpreenderam a todos. Não vendo como vencer, os inimigos desistiram. Foi assim que iniciou-se o governo do Bom-senso.

Com aquilo, o Ódio adquiriu um controle maior. Mas não estava satisfeito. E um outro plano surgiu em sua mente. Assim nasceu a Fantasia. De início, aquilo não abalou o Bom-senso. A Fantasia até costumava trabalhar ao seu lado. A humanidade, entretanto, fez com que a deusa crescesse muito. E tudo virou uma bagunça. O Bom-senso e o Amor tiveram uma enorme discussão, rompendo os laços entre a razão e a emoção. Criaturas incríveis surgiram, como vampiros que brilhavam à luz do Sol. Era inegável o domínio daquela nova deusa. O Bom-senso acabou por desertar e o Amor, desesperado por retomar o controle, permitia qualquer romance. E os relacionamentos entre humanos e criaturas começaram a dar certo.

Esta dimensão continua uma confusão. Há alguns que acham isto agradável. Outros lutam contra a situação incansavelmente. O Ódio fica cada vez mais satisfeito, agindo ao lado da Fantasia, que é distraída demais para perceber o mal que acontece debaixo de seu nariz.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Quem irá ligar na manhã de domingo?

Não posso dizer que esse texto seja metade de minha autoria. Usei como base o videoclipe de "Paperthin Hymn" (http://www.youtube.com/watch?v=2exE-td4F3k), do Anberlin, uma banda de rock alternativo, e misturei com algumas ideias para complementar e dar sentido. Esta, na minha opinião, é a melhor música deles e o videoclipe com o melhor enredo. Estava há um bom tempo sem escrever e assim que vi o clipe, sabia que precisava escrever algo parecido com aquilo. E saiu tudo em menos de quinze minutos.



Em um dos corredores daquele hospital, aguardava sentado um rapaz que não devia passar dos vinte e cinco anos. Fazia quanto tempo que ele estava ali? O bastante para o tédio tê-lo dominado. Ele bufou e decidiu levantar-se. Sabia qual era a sala; o rumo estava gravado em sua mente, poderia ir até lá de olhos fechados. Não havia necessidade de aguardar mais até que uma enfermeira resolvesse lhe dar permissão. Portanto, foi, pouco se importando se alguém lhe impedisse no meio do caminho.

O som da porta sendo aberta despertou-a instantaneamente. E sorriu, feliz como não podia nos últimos dias, ao vê-lo aproximar-se.

Ele viu-a mais pálida do que nunca antes e, contrariando o sorriso dela, sua face revelou uma tristeza profunda. Pobrezinha, sempre sofrera de asma. E, por azar, algumas semanas atrás, quando fora fazer uma viagem a Bariloche, pegara uma nevasca horrível que a deixara presa com os pais no chalé. Os ataques de asma foram amparados por seu broncodilatador, mas o frio era muito e, devido à escassez de alimento, uma gripe piorou seu estado. Depois de resgatada a família, a moça foi imediatamente encaminhada a um hospital e internada. De seu país, o rapaz disse “dane-se” a tudo e todos e, preocupadíssimo com a namorada, viajou até ela.

Ela suspirou lentamente quando observou a expressão do namorado. Estava tão mal assim? Cadê um espelho quando se precisa? Mulheres. Pensando em aparência mesmo nos momentos mais graves. Mas logo ele também sorriu. E curvou-se para que ela recebesse um beijo.

Conversaram um pouco. A cada cinco palavras, porém, ela tinha um acesso de tosse que parecia castigar-lhe o corpo inteiro. E ele ficou indignado. Por que a internação não estava dando resultados? Como podia ela estar piorando? Olhou para uma cadeira de rodas ao lado do leito e ficou fitando-a por um longo momento sem saber o motivo. Até que a idéia formou-se por completo.

Ela se viu envolvida pelos braços de seu amado. Chegou a pensar em coisas que não deveriam acontecer num quarto de hospital, mas o rapaz não fez nada daquilo. Apenas — se é possível falar a respeito disto como “apenas” — retirou a agulha que ligava sua veia a uma garrafa de soro e os fios restantes de seu corpo, o que levou um dos aparelhos a soar um apito insuportável. Mas ele rapidamente tomou providências, desligando-o da tomada.

Ele não deu explicações a ela. Pegou-a nos braços e riu de sua expressão confusa. Logo, colocou-a na cadeira de rodas, abriu a porta do quarto, segurou a cadeira e o passeio começou.

Havia placas pedindo silêncio, por favor, em todos os corredores do hospital. Foram completamente ignoradas. O rapaz corria sem parar com a cadeira de rodas, mesmo nas “curvas”, e os risos de sua namorada ecoavam por todos os andares do prédio. E aquilo era música para os ouvidos dele. Pois o efeito de seu plano superava o que ele havia esperado. Se os médicos não podiam curar sua amada, ele o faria.

Enfermeiras e médicos olhavam incrédulos para aquele casal voador. E nada podiam fazer quando finalmente percebiam o que ocorria, pois os dois já estavam longe demais para que conseguissem impedir. Os funcionários restantes sorriam. Felicidade gera felicidade e isto é algo impossível de ser contido.

Depois de uns dez minutos, a brincadeira foi interrompida. Um paredão de seguranças foi formado no meio de um dos corredores, portanto, não houve como prosseguir. Mas tudo bem. Aquele tempo proporcionara exatamente o resultado que o rapaz queria. E sem precisar escutar ordens hostis, ele levou de volta a namorada ao leito.

* * *

Um conhecido apito insuportável despertou-a de súbito. Mesmo assim, ela abriu os olhos vagarosamente. Olhou para a esquerda e ali estavam seus pais. Ela tentou sorrir para eles, mas a expressão mais que soturna deles não a permitiu. Foi então que ela olhou para a direita, na direção do som agudo. Ali, no outro leito, estava o namorado, inconsciente. Dois médicos preparavam um desfibrilador. Abriram violentamente a camisa dele e o choque do ato seguinte fez o corpo do rapaz erguer-se brevemente.

Mais tarde, ela descobriu que houvera um acidente pela manhã. O ônibus que rumava ao hospital, dentro do qual se encontrava seu namorado, tombara. Ele e outras pessoas foram resgatados, mas já era tarde demais. O rapaz tinha problemas cardíacos e o susto foi letal.

Enquanto ela ouvia essa história, e também quando presenciava a morte de seu namorado, só podia pensar nos momentos felizes que tivera em seu sonho.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O vilão da minha vida

Sufocado. Um sentimento corriqueiro fica sufocado em meu peito. Faz com que minha respiração torne-se difícil. Com que eu fique sem vontade de fazer o que gosto. Tenho certeza de que este sentimento não domina só a mim. Não sou uma exceção afinal, nunca sou. Tento fazer de tudo ao meu alcance para livrar-me dele. Nos momentos de desespero, as lágrimas acabam por me acolher. O nome deste sentimento? Nunca me vem à cabeça quando quero saber. Mas estou certo de que foi ele o responsável por levar a humanidade aonde ela está. A evolução, o progresso — seja pelo lado bom ou pelo ruim. Exato, estou afirmando que o que sinto com tamanha frequência causou tudo isso. E talvez agora que o conheço, que sei o que ele é, possa ao menos tentar arrancá-lo de meu peito.

Maldito seja. O Tédio.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A escolha de Páris

Minha irmã mais nova, Carol, tinha um trabalho de história. Precisava fazer uma historinha baseada no mito de Páris (http://pt.wikipedia.org/wiki/Páris) e pediu ajuda para mim. Acabou que eu fiz minha primeira crônica, que encontra-se abaixo:



Talvez aquele dia tivesse sido apenas mais um. Mas tudo mudou quando Sara — apenas conhecida por este nome, pois os amigos de rua assim lhe chamavam — abriu aquele saco de lixo à procura de comida. Poderia ter sido qualquer outro saco. Qualquer outra pessoa poderia tê-lo encontrado. Mas não. Ela tinha sido a sortuda.

Sara, pobre Sara. Apenas cinco anos e tudo de que se lembrava era seu cobertor cheio de buracos, seu lugarzinho na calçada de uma das principais avenidas da cidade. Alguns amigos com quem dividia os restos de comida, mas nenhum em especial. Às vezes, tinha a sorte de encontrar um pão duro, um osso de frango ou até uma pessoa que passava correndo sem olhar para o seu rosto e, talvez sem querer, dava-lhe de esmola uma nota de dez.

Mas hoje estava tudo diferente. De certa forma, quando o sol refletiu naquele lindo anel dourado, Sara não pensou em sua barriga vazia. Ficou distraída o contemplando, sem ter noção do tempo. Só voltou a ter consciência quando uma sombra escondeu o Sol.

Ela fechou a mão. Não, nenhum de seus amigos poderia ver aquele anel. Não queria dividi-lo com ninguém. Mas ficou surpresa quando ouviu uma doce voz feminina.

— Olá.

Sara virou-se assustada.

— Oi.

Ela coçou a cabeça, constrangida. A mulher não era alguém que conhecesse. Tampouco era uma mendiga. É claro que não, suas roupas não lhe deixavam sombras de dúvida. Parecia até alguém da tevê, com aquele terninho e calça social bege.

Ela estendeu a mão.

— Eu sou Laura, uma assistente social.

Sara piscou. Pegou a mão da mulher em dúvida.

— Pode me chamar de Sara.

Laura sorriu.

— Bem, garotinha, não tenho muito tempo para explicar por que, mas você precisa fazer uma escolha. E rápido.

Sara ficou confusa. A mulher afagou seus cabelos.

— Você só pode optar por uma das três escolhas que te ofereço.

Laura tirou algo do bolso. Era uma carteira. Abriu-a e mostrou para Sara.

— Dinheiro. Você pode pegar o quanto quiser.

Sara olhou para as notas. Todas azul-claras, aquelas que os garotos pareciam tanto venerar. Antes que pudesse pegar uma, Laura guardou a carteira e tirou alguns papéis de uma pasta que carregava.

— Matrícula. É para um internato onde você crescerá e será educada.

Sara estava confusa demais. E desconfiada. O que aquela mulher pediria em troca de favores tão grandes? Mas Laura pôs os papéis de volta na pasta e tornou a falar:

— Ou sua mãe. Poderia conhecê-la e ser amada por ela. Sua mãe. Aquela que te abandonou na rua, que te deixou sozinha. Que não se preocupou em abandoná-la para procurar comida no meio do lixo.

Uma lágrima rolou pelo rosto da mulher.

Sara não percebeu. Seus olhos brilhavam.

— Você conhece minha mãe?

Laura fez que sim com a cabeça.

— E então, menina? O que vai escolher?

Sara se apavorou. Não sabia o que escolher. Mas seus pensamentos foram interrompidos quando Laura agachou-se e segurou sua cabeça. Sara olhou diretamente para os olhos da mulher. E ficou surpresa. Conhecia aqueles olhos de certa vez quando abriu um saco de lixo e se cortou. Era o pedaço de um espelho. Olhara para ele e lembrava-se de ter visto os mesmos olhos.

Ela já sabia o que escolher.