sábado, 4 de junho de 2011

"... E ao pó tornarás"


— Abra os olhos — ordenou Luciano à bebê.

Ali era um quarto de maternidade. Já passava da meia-noite, todas as luzes estavam desligadas e a fraca iluminação provinha da Lua Cheia daquele dia.

A bebê abriu os olhos; havia compreendido a ordem. Além disso, reconhecia a voz. Era a voz de seu amado.

* * *

Cátia era uma bruxa. Tinha vinte e seis anos e já sabia ao menos metade do que um bruxo precisa saber, por isso, era considerada muito poderosa. No entanto, tudo em excesso tem grande possibilidade de ser perigoso.

Ela era dotada de grande beleza, o que, também devido à inteligência dela, a tornava alvo de invejosos. Ninguém sabia, porém, de sua enorme fraqueza: ela era estéril e, desde pequena, desejava criar um pequeno bruxo. Poderia apelar para a adoção, contudo, dificilmente encontraria o que queria. Em sua realidade, havia poucos com poderes mágicos.

Sempre que via um bebê no colo da mãe quando assistia a um filme, uma lágrima descia do olho e, então, não havia remédio: ela não conseguia parar de chorar até dormir e, quando o sono lhe trazia alento, tinha sonhos desoladores; houve uma vez em que sonhara que era a única pessoa do mundo e, para ela, aquilo era horrível. Adorava estar no meio de multidões.

As crises pioraram quando ela começou a namorar. Quando olhava para o rosto de seu amado, pensava no quanto o filho poderia ser perfeito. Ele, sabendo das condições dela, dizia-lhe que não havia problemas, que o amor dos dois compensava tudo, mas era tudo mentira. Em segredo, ele compartilhava do sonho da amada.

Houve um dia em que Cátia foi visitar a sogra. Depois de um apetitoso almoço, como só um almoço mágico pode ser, sentaram-se todos no sofá para assistir à tevê. O ar era agradável, todos se sentiam bem, quando a sogra perguntou:

— Já estão noivos? — coisas de sogra…

O filho e Cátia sorriram constrangidos.

— Quando vão me dar um netinho?

Cátia congelou. A mulher não sabia que ela não podia ter filhos.

— Ora, meu filho. Você fala desde criança que quer ser pai!

Os olhos de Cátia saltaram. Uma lágrima desceu por seu rosto, entretanto, ela não podia deixar o amado e a sogra vê-la chorar. Levantou-se e deu qualquer desculpa para ir para casa. O amado ofereceu-se para levá-la, mas ela disse que não havia necessidade.

Correu por ruas em prantos. Não olhava para os lados e, na realidade, nem sabia se realmente estava no caminho certo para casa. Ela só se interrompeu quando o celular começou a tocar. Olhou para a tela e quem ligava era seu amado.

— Desculpe-me — ela pediu ao atender.

— Pelo quê, meu amor?

— Por não poder te dar um filho…

Demorou até que ouvisse novamente a voz do amado.

— Querida, isso não é sua culpa. Já não posso negar que desejo um filho, mas… Você sabe, nosso amor compensa tudo.

— Não compensa! — ela replicou. — Eu te darei um filho. Eu prometo te dar um filho.

Mais uma vez, a resposta demorou a vir.

— Retire a promessa — ele ordenou.

— Não. — Cátia desligou a chamada, secou os olhos, ergueu a cabeça e seguiu para casa.

Chegando lá, ela foi a seu quarto e pegou o livro de feitiços. Abriu-o e já sabia em que página colocar: “Feitiço da Fertilidade”. Sua mãe o ensinara a ela quando era pequena; haviam acabado de mudar de casa. Sua mãe sempre adorara ter um jardim e, infelizmente, naquela casa, o solo era infértil. Depois de realizado o feitiço, dentro de poucos dias, apareceu o jardim mais belo que Cátia viu na vida.

A moça não sabia se o feitiço funcionava com humanos, porém, estava disposta a arriscar. Pegou todos os componentes requeridos pelo feitiço e sua varinha.

Mais ou menos às onze da noite, Cátia apareceu na casa do amado. Quando ele abriu a porta, viu a namorada mais linda que nunca. Ela entrou e deu-lhe um delicioso beijo. Os dois se encaravam quando o beijo acabou. Cátia estendeu a mão para o amado, que a pegou, e ela o levou a seu quarto. Eles tiveram uma ótima noite de amor.

* * *

Cátia não se sentia bem na manhã seguinte. Estava com muito sono, mas uma dor no abdome não a deixava dormir. Sentiu que seu amado já não estava na cama; fora trabalhar. Ela abriu os olhos e olhou para o abdome. Não acreditou no que via: sua barriga estava enorme, como a barriga de uma grávida de oito meses.

— Esse é só o começo — Cátia ouviu uma voz.

Virou-se e viu uma senhora a fitá-la. Era sua avó, uma bruxa sábia, com noventa anos, idade que poucas bruxas conseguem alcançar.

— O que houve? — indagou Cátia.

— Eu nunca vi algo assim em toda a minha vida — disse a velha. — Já vi gravidez acelerada por mágica, mas, deuses, o que você fez?

— Como você entrou aqui? — Cátia estava apavorada.

— Diga-me: o que você fez?

Cátia baixou a cabeça, envergonhada.

— O feitiço da fertilidade.

A senhora boquiabriu-se. Como disse, havia visto muitas coisas em sua vida, no entanto, aquilo era novo e assustador.

— Como você ousou tentar? É um feitiço para tornar o solo fértil, nunca funcionou com humanos. E, se funcionou com você, algo aterrorizante está por vir. Há um monstro dentro de você.

Cátia olhou outra vez para o abdome, ainda mais amedrontada.

— Eu senti que estava em perigo. Um bruxo não pode deixar seus descendentes na mão. Mas… eu nunca imaginaria isso.

As palavras da avó não amenizavam a situação. Contudo, a velha senhora não ligava para eufemismos. Tragédias faziam parte de sua vida.

— Precisamos fazer um aborto — ela disse.

Pegou a mão de Cátia e a fez levantar-se. Chegando ao lado de fora da casa, a avó pegou sua vassoura, montou nela e fez Cátia montar-se à sua frente. Não confiava que a neta pudesse se segurar; muito provavelmente, aquela aberração a deixara fraca.

Cátia, durante a viagem aérea, viu sua mão ficar marrom. Poderia ficar assustada, entretanto, sua visão estava turva, a cabeça parecia não funcionar muito bem. Já a senhora prestava muita atenção, estupefata, ao que ocorria à neta. Sua pele branca ia se tornando negra a cada segundo. Os pés descalços ressecavam. Os dedos da neta se desfaziam devido ao vento. Não sabia se acelerava para chegar logo a sua casa; tinha medo de fazer a neta ser toda levada pelo vento. No entanto, se fosse devagar, teria tempo de salvá-la? Ela decidiu correr. A situação a estava deixando sem muitas esperanças.

A senhora estacionou a vassoura do lado de fora da sua casa, fez a neta colocar o braço em seus ombros e encaminhou-se ao interior. Deitou-a no sofá e foi procurar pelo bisturi. Quando o encontrou, retornou para Cátia e, sem se preocupar em dar-lhe anestesia, começou a cortar a barriga da neta. A lâmina deslizava com incrível facilidade. Ao invés de sangue, a velha senhora viu lama. A última coisa que Cátia viu foi o olhar desesperado da avó.

* * *

A bruxa anciã tirou a aberração da barriga da neta após vê-la transformar-se toda em terra. Era um bebê verde, com alguns galhos saindo de todos os orifícios, brotando folhas. Ele soltava lamentos terríveis. Ela não teve escolha senão eliminá-lo. Depois, enviou uma mensagem mágica ao namorado da recém-falecida neta.

O rapaz apareceu aflito na casa da senhora. Ela varria em prantos a terra que fora Cátia, espalhada por toda a sua sala.

— É… é ela? — ele indagou.

A senhora assentiu, fungando.

Ele atirou-se ao chão e pegou um punhado de terra. Começou a chorar também.

— É um fim horrível — a senhora disse.

O rapaz pensou naquela palavra. Fim?

— Ela me deu um filho? — ele perguntou.

— Eu chamaria aquela coisa de tudo, menos filho.

— Oh, não…

A senhora parou de varrer e encarou-o.

— O que houve?

— Uma promessa — ele respondeu. — Ela prometeu me dar um filho.

A bruxa anciã ficou ainda mais aterrorizada. Além de haver morrido daquela forma assustadora, a neta fizera uma promessa e não a cumprira em vida. O espírito de um bruxo não descansa com promessas pendentes.

* * *

Luciano se rejubilou quando a bebê abriu os olhos. Se ela compreendera sua ordem, o espírito de sua amada estava ali.

— Cátia — ele disse —, agora você pode cumprir sua promessa.

Cátia não conseguia identificar muito bem as coisas à sua volta. Tudo que via eram vultos. Olhava na direção de onde viera a voz de seu amado e via apenas uma silhueta corpulenta. O amado era magro quando o vira pela última vez.

A silhueta aproximou-se dela.

— Dezoito anos e estamos juntos mais uma vez, meu amor. Sua avó e eu conseguimos. Você tem um novo corpo.

Cátia olhou surpresa para o vulto. Um novo corpo? Seu espírito havia possuído o corpo de um nenê para cumprir as promessas pendentes. Não! Ela não queria escravizar um corpo. Não queria tirar a oportunidade de alguém ter vida. Queria somente retirar a promessa que fizera, mas agora era tarde demais.

— Nosso filho… — Luciano, seu amado, disse. Cátia notou um quê lunático em seu tom. Ficou ainda mais triste: percebeu que sua morte o fizera enlouquecer.

Ela quis gritar “Não”, no entanto, a única coisa que saiu de sua boca foi:

— Nhá!

— Que ternura! — exclamou Luciano encantado. — Esqueceu de como falar… Vou ter tanto prazer em ensiná-la.

Cátia fez mentalmente algumas contas. Ele agora devia estar com quase cinquenta anos. Ficava cada vez mais assustada. Seu amado não tinha noção de quanto tempo precisaria esperar até que ela pudesse cumprir a promessa de dar-lhe um filho?

Ele pegou-a e saiu correndo do hospital. Cátia começou a chorar e berrar, mas Luciano a silenciou colocando a mão sobre sua boca.

— Fique calma, meu amor. Tudo ficará bem.

Cátia, porém, não tinha tanta certeza.